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  • Foto do escritorRebecca Alves

Arquivo Nacional e os perigos do apagamento da memória



Descarte de documentos públicos, inviabilização do acesso a materiais históricos, desmonte de instituições de preservação da memória coletiva e aparelhamento ideológico. Pode parecer o romance distópico de George Orwell, 1984, no qual o Ministério da Verdade é responsável por reescrever o passado de modo a estar a serviço do governo. Mas, é a realidade atual dos acervos públicos brasileiros, inclusive, o mais importante deles, o Arquivo Nacional. A doutora em história, Jessie Jane conta que o país vive um retrocesso da luta pela conservação da memória, reflexo do retrocesso da própria democracia no Brasil. Para ela, a memória é primordial para a formação da identidade de uma nação, é um direito humano fundamental.


Jessie enfatiza que o pilar de qualquer sistema democrático é o acesso às informações produzidas pelo Estado. Em 2011, foi sancionada a Lei de Acesso à Informação que alçou o Brasil ao seleto grupo de países democráticos. Ela explica que desde o final da ditadura, o Arquivo Nacional passou a ter instrumentos legais para a preservação e documentação de arquivos e que vê o momento atual com preocupação.


"Em tese, o governo não pode destruir os documentos que já estão institucionalizados no Arquivo Nacional, inclusive, isso tem responsabilidade penal. O que eles podem, e estão tentando, fazer é dificultar o acesso e censurar. Já a documentação que está sendo feita pelo governo Bolsonaro, e eu diria até do governo Temer, é a documentação que eles (governo) estão querendo descartar. Por exemplo, a documentação produzida pelo Ministério da Saúde sobre a pandemia. O que eles estão querendo é destruir essa documentação de forma a não a não permitir que Bolsonaro seja responsabilizado pelas mortes. Com todo esse desmonte institucional, os jovens que vão escrever sobre esse período vão ter um apagão de dados", disse.



A doutora em história e representante da ANPUH, Associação Nacional de História, no Conarq, Conselho Nacional de Arquivos, Beatriz Kushnir, ressalta a importância da compreensão de que os arquivos são feitos para a comprovação de direitos. "Eles são um instrumento de inclusão e de cidadania. A pesquisa acadêmica é uma decorrência disto. Enquanto a população não entender que cidadania tem a ver com preservação de informação, de tratamento e acesso, não vai entender qual é a importância dos arquivos", afirma.


Kushnir explica que a produção arquivística brasileira tem muita importância na América Latina e nos países de língua portuguesa, como Portugal. O Brasil é conhecido por ter uma das primeiras leis de arquivos na América Latina, decretada em 1991, e por ter sido duas vezes presidente da Associação Latino-Americana de Arquivos. Apesar disto, os governos não investem nas políticas públicas necessárias para a preservação do material. Ela enfatiza que esta ingerência acontece nos três níveis, municipal, estadual e federal.


O doutor em história e um dos vencedores da 4ª edição do Prêmio de Memórias Reveladas, concedido pelo Arquivo Nacional, Pedro Ivo Teixeirense, acredita que a preservação dos acervos é fundamental para a própria história de um povo, para a formulação de um pensamento crítico sobre a cultura nacional em contraposição a outras formas de cultura e, no momento atual, as pessoas parecem não compreender essa importância.

"A eleição de Bolsonaro mostra um déficit profundo com relação à preservação dos acervos e à valorização da cultura. Nas eleições de 2018, ele não tinha nada no plano de governo ligado à conservação dos acervos, das bibliotecas e dos arquivos. É um governo de destruição nacional. Isso precisa estar claro. Existe sim uma série de iniciativas deste governo no ataque direto à produção cultural brasileira, no ataque às instituições", afirmou.


Pedro enfatiza que o governo Bolsonaro descumpriu todas as recomendações da Comissão Nacional da Verdade, incluindo a sugestão para que o Estado brasileiro proíba as comemorações do Golpe de 1964. Ele acrescenta que o governo desmontou a Comissão da Anistia, ligada ao Ministério da Justiça, e, praticamente, inviabilizou o trabalho da Comissão sobre Mortos e Desaparecidos. Estas grandes iniciativas para a preservação da memória nacional foram transferidas para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, comandado por Damares Alves, e aniquiladas, segundo o historiador.


O apagamento da memória se tornou política pública no país, a começar pelos escândalos ligados aos últimos diretores do Arquivo Nacional. Em 2017, José Ricardo Marques, que havia assumido o posto no ano anterior, foi condenado pela Justiça Federal do Rio de Janeiro pela prática de atos de improbidade, por promover culto evangélico semanal no auditório principal da instituição. Em 2019, Marques foi absolvido pelo Tribunal Regional Federal.


Em 2021, a nomeação do ex-chefe de segurança do Banco do Brasil, Ricardo Borda D’Água de Almeida Braga, gerou indignação entre profissionais e entidades de arquivologia e história. Cinco dias depois, o Ministério Público Federal (MPF) abriu uma investigação para apurar as circunstâncias da indicação. Uma carta assinada por mais de 60 instituições alertava para o descumprimento de um decreto que exige experiência na área para ocupar o cargo e sobre o perigo de possíveis interferências em documentos sobre a memória recente do Brasil, como os acervos do período da ditadura militar (1964-1985) e sobre as populações indígenas.


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