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  • Foto do escritorRebecca Alves

A liberdade do Carnaval é uma ameaça para conservadores

A celebração em 2022 ainda é incerta, mas radicais da extrema direita querem o fim permanente da festa


O carnaval é objeto de pesquisa de muitos estudiosos que o enxergam como uma parte importante na construção da identidade brasileira. O antropólogo Roberto DaMatta e a jornalista Rita Fernandes caracterizam a festa como um momento que representa o gozo da criatividade, do encontro e da liberdade. O ano de 2021 foi o primeiro em que as ruas do Rio de Janeiro não foram tomadas por blocos carnavalescos desde 1889, quando surgiram os primeiros cortejos licenciados pela polícia da cidade. 2022 ainda é uma incógnita e para as ligas dos blocos está correta a decisão da Prefeitura do Rio de se preparar, mas só definir se acontecerá, ou não, semanas antes com base nas avaliações do Comitê Científico. No entanto, Rita alerta para o perigo que o carnaval corre com as manobras políticas de radicais que querem acabar de vez com a festa.

No livro "Carnavais, malandros e heróis", DaMatta analisa a folia como um ritual de inversão em que as classes sociais podem se relacionar de “cabeça para baixo”. "No carnaval, deixamos de lado nossa sociedade hierarquizada e repressiva, e ensaiamos viver com mais liberdade e individualidade", escreve. O antropólogo acrescenta que o desfile carnavalesco pode ser chamado de um desfile polissêmico por remeter a vários universos simbólicos da sociedade brasileira, uma vez que reune a diversidade na uniformidade, a homogeneidade na diferença e a aristocracia de costume na pobreza real dos atores. O próprio nome escola de samba é mais um paradoxo do mundo carnavalesco. Grupo de pessoas que no mundo diário vive sob as regras da elite e ocupa suas cozinhas e oficinas, surge como os professores que revelam um grande amor à vida, aponta.

Para o doutorando em Comunicação pela UERJ e autor do livro "Cidade Pirata: Carnaval de Rua, Coletivos Culturais e o Centro do Rio de Janeiro (2010-2020)", Victor Belart, o Brasil tem uma tradição racista e de disputa de classe que ataca os mais pobres como grupos perigosos. E hoje, completa, existe um projeto político de Brasil que rompeu com alguns consensos nacionais que pareciam intocáveis, como o próprio carnaval. As pessoas podiam gostar ou não da festa, mas não se discutia que o Brasil era o país com o maior carnaval do mundo e que isto era um fator de identidade.

Jovem percussionista da Mangueira no desfile de 2019 (foto: Filipe Foto)
Jovem percussionista da Mangueira no desfile de 2019 (foto: Filipe Foto)

"Hoje existem pessoas com uma ideia de Brasil conservador que busca exterminar o carnaval. Acham que é atraso e bagunça, não conseguem entender o potencial econômico que ele tem. Se dependesse de uma classe política, o carnaval estaria ameaçado de extinção. Não é de existir o próximo carnaval ou não, mas é um projeto para aniquilar mesmo a festa. Um projeto ambicioso de extermínio de uma cultura popular que não cumpre com a imagem de Brasil que se espera: conservador e associado a valores de um protestantismo recente que este grupo vem tentando impor na marra, negando uma tradição popular que nunca foi pautada, necessariamente, por lado político", explica.

Em sua coluna na Veja Rio, Rita, que também é presidente da Associação Independente dos Blocos de Carnaval de Rua da Zona Sul, Santa Teresa e Centro da Cidade do Rio (Sebastiana), escreveu que carnaval é liberdade, democracia, diversidade, multiplicidade e pluralidade, e tudo isso incomoda porque é "colorido demais" para pessoas que defendem uma "moral branca, arcaica e antidemocrática". De acordo com DaMatta, o fato do carnaval ser múltiplo permite o exercício de uma criatividade social extrema. O cerne do ritual é o universo humano com sua eterna sugestão de inclusão e comunhão, por esta razão ele não tem dono, é do povo.

Para o jornalista e cantor, Gabriel Dias, a escola de samba é uma instituição que, historicamente, está presente em lugares onde o poder público não está, por isso o sentimento comunitário que ela cria é muito poderoso, e com a atual polarização política se potencializa ainda mais. "O governo vigente sabe o tamanho do problema que será fazer o carnaval do ano que vem porque é o momento onde serão expostas as feridas e as dificuldades que as classes mais pobres atravessaram nesse período de pandemia", afirma. Dias enfatiza a importância da realização da festa.


"Cláudio Russo, uma figura que escreve sambas pra diversas escolas, me disse que, como não tivemos Carnaval em 2021, abriu-se um vácuo para pessoas acharem que a festa não é necessária. Realizar a folia assim que possível é de extrema relevância para mostrar a importância das escolas de samba como formadoras de cultura, de novos talentos e de renda pra cidade. Pessoalmente, ainda acrescento que assim como outras datas, precisamos do Carnaval para marcar o nosso relógio mental, para festejarmos a vida e para esquecermos um pouco do trabalho de um período pesado de home office", ressalta.

Carnaval no Centro do Rio (foto: About Carnaval)
Carnaval no Centro do Rio (foto: About Carnaval)

Rita acredita que a sociedade precisa do carnaval por tudo que ele traz, desde a liberdade, alegria e manutenção da saúde mental até o impacto na economia, geração de empregos, beleza e exercício da democracia.

Os pesquisadores enxergam um papel primordial na rua para o simbolismo da festa. Belart vê uma relação intrínseca no carnaval com modos de experienciar de maneira sensível o organismo vivo que é a cidade. Para ele, com a dimensão que a festa atingiu na cultura popular, o carnaval se tornou mais do que um período de 5 dias, ele norteia um modo de vida ao longo de todo o ano.

"A experiência vivida no carnaval muda o nosso modo de vivenciar a rua ao longo do ano, a gente tem uma tendência maior a experienciá-la de outros modos, a partir de outras festas popular e outras relações, como as rodas de samba. Toda cidade que tem um forte carnaval de rua, acaba tendo uma cultura de rua muito forte também. Isso não é coincidência, é porque existe toda uma movimentação que se retroalimenta ao longo do ano e que vai ter a rua como base", disse.


DaMatta destaca no livro que no carnaval o centro da cidade deixa de ser o local desumano das decisões impessoais para se tornar o ponto de encontro da população. A rua, em oposição a casa (que representa o mundo privado e pessoal), é o local do evento.


“No carnaval, em vez das marchas frenéticas e mortais dos ônibus e automóveis, temos uma marcha invertida, sem rumo ou direção certos. O caminho do carnaval é altamente ritualizado porque é abertamente consciente de si mesmo. Nele, não importa muito aonde se quer chegar e o modo como se chega, mas simplesmente caminhar sem rumo e sem direção, gozando intensamente do ato de andar, ocupando as ruas do centro comercial da cidade, local das leis impessoais e desumanas do trânsito do mundo diário” , elabora.

Em seu livro "Meu Bloco na Rua: a retomada do carnaval de rua no Rio de Janeiro", Rita, caracteriza o ressurgimento do carnaval de rua depois da ditadura militar como uma grande rede de afeto ligada por elementos tais quais o botequim, a praia e as rodas de samba, todos espaços informais e ao ar livre. "Os botequins são instituições capazes de evocar uma multiplicidade de referências simbólicas que resultam da qualidade urbana carioca, pelo fato de serem autores da própria cidade, construtores permanentes da sua significação e personalidade."





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